Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio.
Paulo Sergio Bandeira.[1]
É notório que os tempos hodiernos trazem inovações relevantes para o desenvolvimento humano com propósitos específicos voltados a aumentar a qualidade de vida das pessoas, prolongando a expectativa de vida e oferecendo melhores condições de sobrevivência.
Contudo, a modernidade também traz novas mazelas atreladas ao avanço frenético das tecnologias que acabam por impactar diretamente nos relacionamentos interpessoais, justamente na contramão da qualidade de vida, provocando nos indivíduos severas frustrações por não saberem lidar corretamente com os infortúnios do cotidiano, abalando severamente a saúde mental dessas pessoas, resultando em patologias como a ansiedade, depressão, esquizofrenia, bipolaridade, distúrbio do pânico, entre outras.
Essa triste realidade pode trazer consequências graves para os portadores de doenças relativas à saúde mental, como a automutilação e o suicídio (tentado ou consumado), denominados como atos de violência autoprovocados[2].
O ato de retirar a própria vida já é considerado a segunda maior causa de morte de jovens de 15 a 29 anos no mundo, segundo relatório publicado em setembro de 2019 pela Organização Mundial de Saúde – OMS, haja vista que a (PINTO, 2017, 208)“constante busca por identidade, os amores não correspondidos, os conflitos familiares decorrentes de sua mudança de comportamento, a inquietude e medo diante da vida que se descortina e a intensa instabilidade emocional acabam por induzir o jovem à autoagressão, muitas vezes somente para chamar a atenção da família,” não se ignorando ainda questões interpessoais como o bullying.
O levantamento realizado pela OMS (2019) estima que 800.000 pessoas cometeram suicídio no mundo em 2016, o que equivale a 01 (uma) morte a cada 40 segundos.
No Brasil os números também são extremamente preocupantes, embora menores do que a taxa média mundial, pois alcança 6,1 para cada 100.000 habitantes que deliberadamente ceifam suas existências, atingindo a marca espantosa de 13.467 casos de pessoas que tiraram a própria vida.
Diante desse cenário, e visando a prevenção e tratamento desses eventos fáticos, o Poder Público recentemente exarou a Lei nº 13.819 de abril de 2019, bem como o Decreto nº 10.225 de fevereiro de 2020, implantado normas gerais de política nacional de combate e tratamento da automutilação e suicídio, cuja implementação deve ser seguida pela União, Estados, Municípios e Distrito Federal em caráter permanente.
Essas disposições legais têm como objetivos a promoção da saúde mental, controlando seus fatores determinantes e condicionantes; garantir tratamento psicossocial adequado àqueles em sofrimento psíquico e igualmente aos seus familiares e pessoas próximas das vítimas de suicídio; informar e sensibilizar a sociedade incentivando a coletividade a reconhecer a importância das lesões autoprovocadas e suicídio como problemas de saúde pública, fomentar o debate, capacitação e articulação intersetorial de profissionais da saúde, comunicação, imprensa, polícia, educação, entre outas.
Nessa missão, a participação dos estabelecimentos públicos e privados de saúde e ensino têm grande relevância, especialmente nas escolas onde se mostram mais comuns a reprodução de comportamentos que poderão ser identificados como eventuais indicativos de tentativas de suicídios e automutilações, de tal sorte que, respectivamente, torna-se obrigatória a notificação às autoridade sanitárias e ao conselho tutelar nos casos suspeitos ou confirmados de violência autoprovocada, com ou sem ideação suicida, sendo que tais comunicações sigilosas para preservar as identidades dessas vítimas.
Vale dizer, para qualquer das hipóteses de suspeita da violência autoprovocada, que envolvam crianças ou adolescentes, ocorridas em estabelecimentos de saúde ou instituições de ensino, o conselho tutelar[3] imprescindivelmente deverá ser notificado.
Neste particular, dada a especificidade atribuída à criança e ao adolescente, as escolas públicas e privadas deverão obrigatoriamente informar e treinar os profissionais que trabalham em seus recintos quanto à forma da notificação que deverá ser encaminhada ao conselho tutelar, primando pelo cuidado e a preservação das informações prestadas, conquanto o Ministério da Educação tenha a tarefa de capacitar gestores, professores e a comunidade escolar em relação à prevenção violência autoprovocada.
Não obstante o ordenamento legal trazer a compulsoriedade da notificação pelos estabelecimento de saúde e ensino, ao que parece, se mostra omissa quanto as demais situações em que a violência autoprovocada poderia ser notada em crianças e adolescentes. Há que se levar em conta que a proteção integral desse público vulnerável, obriga a família, a sociedade e Estado a assegurar a saúde física e mental dos infantes, conforme determina o art. 227[4] da Constituição, de modo que não atribuir a obrigatoriedade da notificação a outros agentes limita o alcance constitucional da proteção integral, na medida em tal obrigação é de todos. Portanto, espaços como clubes de recreação, hotéis e casas de acolhimento familiar, nos quais se concentra um significativo número de crianças e adolescentes, e que são supervisionados por profissionais responsáveis pela integridade física desses indivíduos, também deveriam estar inseridos na obrigatoriedade da notificação de casos de automutilação e suicídio.
Outrossim, embora louvável a determinação legal da notificação compulsória, a aludida norma não trouxe consigo quais as penalidades imputadas àqueles que não cumprirem com a obrigatoriedade de informar o a violência autoprovocada, o que poderá tornar ineficaz tal compulsoriedade.
Entretanto, não se pode esquecer da recente alteração legislativa realizada no Código Penal que, por meio da lei 13.968 de dezembro de 2019, modificou o entendimento sobre o crime[5] de incitação ao suicídio e incluiu as condutas de induzimento ou instigação à automutilação, reconhecendo a imputabilidade da pena de reclusão para aqueles que de algum modo participarem como incentivadores da violência autoprovocada, sendo duplicada a condenação quando a vítima tratar-se de criança ou adolescente, e na hipótese do crime ser praticado contra adolescentes com idade inferior a 14 anos, cujo resultado seja a lesão corporal grave ou morte, o agente indutor poderá responder diretamente pelo crime de lesão corporal e homicídio, com penas que variam de 2 a 20 anos de reclusão.
Destarte, não ignorando a participação efetiva de outras medidas[6], as normas legais em comento se mostram como um significativo ferramental no combate e tratamento da automutilação e suicídio, o que por certo, especialmente às crianças e adolescentes, terão como escopo reduzir o avanço das doenças mentais que assolam a juventude brasileira.
REFERÊNCIAS
BANDEIRA, Paulo. Responsabilidade Civil nas Instituições de Ensino. Curitiba, Juruá, 2019
BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em 11/02/2020.
______ Lei 13.819/2019. Institui a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, a ser implementada pela União, em cooperação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; e altera a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13819.htm > Acesso em 11/02/2020
______ Lei 13.968/2019. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para modificar o crime de incitação ao suicídio e incluir as condutas de induzir ou instigar a automutilação, bem como a de prestar auxílio a quem a pratique. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13968.htm > Acesso em 11/02/2020.
______ Decreto 10.225/2020. Institui o Comitê Gestor da Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, regulamenta a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio e estabelece normas relativas à notificação compulsória de violência autoprovocada. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Decreto/D10225.htm > Acesso em 11/02/2020
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Suicide in the word: global health Estimates. 2019. Disponível em < https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/326948/WHO-MSD-MER-19.3-eng.pdf > Acesso em 11/02/2020.
PINTO, Lélia Lessa Teixeira et al. Tendência de mortalidade por lesões autoprovocadas intencionalmente no Brasil no período de 2004 a 2014. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, v. 66, n. 4, p. 203-210, 2017.
[1] Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA (2017-2019). Especialista em Direito Educacional pela Faculdade ITECNE (2017). Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Positivo (2013). Membro da Comissão de Responsabilidade Civil da OAB/PR. Membro da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB/PR. Membro do Conselho Científico da Associação Brasileira de Direito Educacional (ABRADE). Professor do Curso de Pós-graduação em Direito Educacional no Grupo Educacional ITECNE. Advogado. E-mail: paulobandeira@rechadvogados.com.br.
[2] Segundo Pinto (2017, p. 204) discorrendo sobre o suicídio e automutilação descreve que essa violência também se denomina como lesão autoprovocada intencionalmente (LAI), sendo que o primeiro “abrange pensamentos suicidas, tentativas de suicídio e suicídios concluídos, ou seja, em que há evidências implícita ou explícita da intenção de morte”, ao passo que “o segundo envolve atos de automutilação, em que a intenção não é matar-se.”
[3] É imprescindível que (BANDEIRA, 2019, p. 94). “quando ocorrer qualquer lesão aos direitos da criança e do adolescente, o Conselho Tutelar deverá ser imediatamente acionado, tendo em vista sua função de zelar pelo cumprimento das prerrogativas daqueles que ainda não atingiram a fase adulta, conforme disciplina o art. 131 do ECA”.
[4] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
[5] Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe auxílio material para que o faça:
Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos
- 1º Se da automutilação ou da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, nos termos dos §§ 1º e 2º do art. 129 deste Código:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.
- 2º Se o suicídio se consuma ou se da automutilação resulta morte:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.
- 3º A pena é duplicada:
I – se o crime é praticado por motivo egoístico, torpe ou fútil;
II – se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência.
- 4º A pena é aumentada até o dobro se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social ou transmitida em tempo real
- 5º Aumenta-se a pena em metade se o agente é líder ou coordenador de grupo ou de rede virtual.
- 6º Se o crime de que trata o § 1º deste artigo resulta em lesão corporal de natureza gravíssima e é cometido contra menor de 14 (quatorze) anos ou contra quem, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, responde o agente pelo crime descrito no § 2º do art. 129 deste Código.
- 7º Se o crime de que trata o § 2º deste artigo é cometido contra menor de 14 (quatorze) anos ou contra quem não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, responde o agente pelo crime de homicídio, nos termos do art. 121 deste Código.
[6] Para o apoio e atendimento daqueles que necessitam de assistência o Centro de Valorização da Vida (CVV) mantém um canal direto pelo número 188, pela internet (www.cvv.org.br) ou presencial em diversas localidades, todos com o objetivo específico de prevenção do suicídio.